sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Guestpost: Feministas chatas e lugares de fala

Chato: adj. Liso, plano; sem relevo/ Fig. Gír. Importuno, maçante, aborrecido; monótono.” (Dicionário online de português).  Mulheres que vem a público demandar direitos ou tentar se inserir em práticas intelectuais e artísticas desde sempre existiram. Formavam uma tímida minoria, mas estavam lá.  Elas foram chamadas de “imorais”, “perigosas”, “diabólicas”, “bruxas”, e recentemente ganharam o título de “feministas chatas”.  Como nossa sociedade constrói significados engessados em oposições binárias e pouco subjetivas, a “feminista chata” só poderia existir em oposição a uma suposta mulher não-chata, ou mulher agradável.  Essa mulher agradável seria aquela que atende a todos os desejos do marido/namorado, é delicada e feminina, não questiona os padrões estabelecidos e aceita com candura a “natural” superioridade masculina.  Do outro lado da história está a “feminista chata”,  uma criatura incômoda que repudia sua própria natureza (feminina) e aterroriza mesas de bar com “teorias conspiratórias” de que está sendo vilipendiada pelo sistema. Ela é vista como uma figura ranzinza com mania de perseguição.  Se nos permitirmos a reflexão por alguns minutos, chegaremos a duas conclusões essenciais:

 1- Estamos realmente sendo vilipendiadas pelo sistema patriarcal e isso deixa muitas de nós irritadas e reclamonas sim;
2- Não é necessariamente o conteúdo da fala das feministas que é chato e chateia os homens.  O que os perturba é algo muito mais profundo e naturalizado nas sociedades: o lugar de fala. Quem pode falar? De que lugar se pode falar? Sobre o que certas pessoas podem falar e outras não podem? O que realmente incomoda os homens é o fato de uma mulher tomar o lugar público da fala e falar sobre coisas relevantes, sobre temas da esfera pública.

O espaço feminino e o espaço masculino são divididos entre o par privado x público.  Há inúmeros exemplos da aplicação dessa oposição em nossas vidas práticas e ela vai desde nossos corpos até nossa educação social.  Nós mulheres temos corpos e lugares de fala privados, já os homens têm corpos e lugares de fala públicos. Enquanto meninas devem manter as pernas fechadas e nunca brincar com os órgãos sexuais, meninos têm os pênis elogiados e tratados como personagens à parte.  Enquanto o homem vai ao trabalho, aos bares e às praças, a mulher é ensinada a se manter no espaço doméstico.  Seu corpo é propriedade e a propriedade deve ser guardada em local seguro: a casa. Quando uma mulher é estuprada, as primeiras perguntas que as pessoas fazem são: “Onde ela estava? Que hora aconteceu o fato? O que ela estava vestindo?”  Especula-se se essa mulher não causou o estupro fazendo o que não deveria, ou seja, saindo de casa a noite expondo publicamente partes do seu corpo. A mulher que se mantém no espaço privado estaria teoricamente isenta do natural e incontrolável impulso sexual masculino. Essa, infelizmente, é a lógica comum em casos de estupro. Lógica bastante incoerente se considerarmos o que realmente nos dizem os dados. A maioria dos casos de violência contra a mulher tem origem dentro de casa e o sujeito é o próprio companheiro.

A história, a política e as artes foram sempre espaços negados à mulher. Educadas para a passividade e excluídas da fala pública, não é surpresa constatar que mesmo em 2012 ainda não há muitas mulheres intelectuais, cientistas, comentaristas políticas ou deputadas. Não há muitas mulheres no hall dos “formadores de opinião”, pois a elas não foi permitido ter uma opinião. A mulher que tem opinião própria e não tem vergonha de expô-la em público será eventualmente chamada de “chata”, e se ela defender os direitos de outras mulheres de também expressarem suas opiniões, então ela será coroada  “feminista chata”.
Mulheres não falam demais como esbraveja o senso comum. Elas falam de menos.  Basta observar uma sala de aula ou uma mesa de jantar com pessoas de ambos os sexos e notar a desigualdade de iniciativa de fala e turnos de fala entre homens e mulheres.  As mulheres falam pouco, e quando falam seu argumento não é levado a sério ou é infantilizado.  É preciso falar e falar em público. Só dando voz às mulheres poderemos empoderá-las. Por tudo isso, digo com orgulho que sou uma feminista chata e falastrona.


Lídia Freitas é formada em Letras e atualmente é servidora pública. Seus textos podem ser encontrados no blog abajur literário. Contato: lidiaspes@gmail.com

4 comentários:

  1. Um post que ressonou justamente com uma preocupação constante minha: a conquista do espaço pela fala. Em minha experiência como aluna, e hoje professora, vejo como a delimitação do território em sala é feita por quem fala primeiro. Quem fala primeiro, em geral, são os homens, como se houvesse um acordo tácito sobre de quem é a titularidade de ter a iniciativa, e esse acordo é mais fácil de ser visto nos relacionamentos a dois, não é? Quem a sociedade diz que deve tomar a iniciativa? O homem! Eu já estava consciente desse mecanismo e, em meu mestrado, já no primeiro dia de aula, comecei a tentar delimitar meu território pela fala. Muita gente não fala porque acha que não tem o que dizer mas, acredite, se você não tomar o espaço de fala, outra pessoa vai fazer isso. O espaço de fala nunca fica vazio.

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    1. Isa, eu realmente percebo essa delimitação de território na sala de aula e acho que ele alimenta todo um ciclo de atividade e passividade, sabe? Porque os homens acostumam a ser a voz ouvida, enquanto as mulheres acostumam a ouvir.

      Há um tempo atrás, num debate na sala, eu fiz uma observação e um dos homens ficou bastante irritado com isso, sendo até que a observação era um complemento do que ele havia dito e lembro que a maneira com que um cara discutiu comigo foi muito intimidante, não pelo conteúdo, mas sim pela forma. Ele praticamente gritava comigo, colocava o dedo na minha cara, como se eu não pudesse discordar dele. Lembro que eu com muito medo, nervosa mesmo, respondia, enquanto ele me interrompia o tempo todo. Foi uma situação horrível mesmo. Eu que não sou tímida hoje tenho um certo receio de me manifestar com medo disso acontecer de novo. E eu acho que muitas vezes a mulher teme falar e falar primeiro com medo de reações de revolta por parte dos homens, afinal, a gente tá sendo educada pra achar que o espaço público é deles desde sempre, né? E eles também. E a gente sabe que quem ousa enfrentar isso costuma ser ofendida.
      No meu caso, eu nem falei primeiro. Eu simplesmente falei e passei por essa situação.

      E essa dinâmica resulta no fator que muitas vezes mulheres professoras e palestrantes recebem uma carga ainda maior de pressão ao falar porque são vistas ainda como invasoras daquele espaço. E as pessoas ficam buscando erros na fala dessas mulheres pra de alguma forma invalidar o fato que ela está ali falando. E tem gente que ainda acha que machismo é coisa do passado. Invalidar/duvidar/pressionar mulheres que falam/produzem conhecimento num nível bem maior que dos homens é ser machista, é valorizar a voz masculina acima da feminina.

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    2. Estou cursando o EM, 3º, numa escola em que a maioria dos alunos antigos estudam naquele lugar desde quando nasceram. A maioria deles, homens; ao menos na minha sala.
      Quando cheguei lá, no 1º ano, os professores se surpreenderam com minha capacidade de fala. Na primeira semana estava disposta a debater com os veteranos sem nem refletir sobre essa suporta hierarquia, pondo-me logo de início em um lugar de "respeito" e destaque. Sempre com bons argumentos, sempre quebrando ou complementando professores, sempre com a melhor resposta na lingua e aquele papo todo.
      Nessa mesma sala, existem também as garotas que são constantemente sacaneadas. Muitas das vezes, parece até que elas resolvem abrir a boca para falar asneiras a fim de chamar atenção. Já conversei com as garotas e percebi nelas um comportamento das meninas da faixa etária que pertenço: "vou me adequar a maioria, mesmo que isso signifique ser vista como inferior."
      E elas são vistas como inferiores MESMO. De tanta zoação dos rapazes, a turma toda se acostumou com a postura.
      Então, temos duas figuras paralelas nesse retrato que dei:
      Eu, Juliana, a séria, bonita, mas que não se "cuida" por usar coque no cabelo, inteligente, mas chata e arrogante.
      X e XX, turbinadas, lindas, cabelos sempre soltos e lisos, perfeitos, maquiadas e... "Idiotas".
      Ou seja, não existe apenas essa demarcação territorial por gênero já citada por vocês, mas também, uma separação por imagem. "Aquela é a Ju, sempre alinhada e responsável. Impecável." "Aquela é a X, tadinha, retardada. Não dá nem para conversar."
      O que, também, é lamentável.

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  2. Pior, nos vemos muitas vezes reguladas e "entupidas" por outras mulheres que aprenderam que se a mulher contesta,discorda c um homem, é maluca....ja passei por varias situações deste tipo...trabalho com numeros e pessoas, tenho uma posição é legal, mas meu relatorio so é realmente aprovado quando o meu socio com o mesmo relatorio apresenta é tido como um belo trabalho...

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